Alice não sabia onde queria chegar (nem eu)
Se é sobre o caminho, o que mais importa é dar o primeiro passo.
Giulia Fontana Bolzani
Planejadora Financeira
Existe uma frase famosa que é atribuída ao livro Alice no País dos Maravilhas. Você já deve ter ouvido em algum lugar, algo assim: “Se você não sabe onde quer chegar, qualquer caminho serve”.
Um arrepio percorre a minha espinha toda vez que eu escuto essa frase. Parece que alguém está passando a unha no quadro de giz.
Primeiro porque essa frase, desse jeito, não está no livro.
Segundo porque eu ouvi esse ‘conselho’ milhares de vezes no meu processo de transição de carreira e, pasmem, não me levar a lugar nenhum, só me paralisou.
Abaixo o diálogo do livro no original e a tradução que faz sentido para mim:
“Gato de Cheshire, você poderia me falar, por favor, para qual lado devo caminhar a partir daqui?”
“Isso depende muito para onde você quer ir,” disse o Gato.
“Não me importa muito para onde-” disse Alice.
“Então não importa para qual lado você for”. “-contanto que eu chegue em algum lugar,” adicionou Alice como uma explicação.
“Ah, você pode ter certeza que vai,” disse o Gato, “contanto que caminhe o suficiente.”
A partir desse diálogo, criaram a citação que mencionei na abertura do texto.
Descobri lendo Antifrágil, de Nassim Taleb, que essa máxima de que “todo agente age em vista de um fim” tem origem em Aristótales, mas é uma frase famosa da Suma, de São Tomás de Aquino.
Provavelmente daí vem essa interpretação famosa do que o Gato fala para a Alice.
Na minha opinião, não só é contraditória com o diálogo como um todo, como não faz muito bem aplicar no dia a dia. (não sou só eu, Taleb defende que: “é o erro humano mais disseminado”*)
Eu ouvi a frase muitas vezes no seguinte sentido: se você não sabe onde quer chegar, nem adianta começar a caminhar porque você não vai chegar a lugar nenhum; antes de começar, você precisa definir qual a linha de chegada.
Dando ênfase às quatro últimas linhas, não me parece ser essa a única conclusão que podemos tirar dessa obra prima. Eu gosto de interpretar de outra maneira que, para mim, faz muito sentido. Veja se você concorda.
Quando eu decidi sair do escritório, eu tinha algumas ideias: continuaria advogando, me envolveria mais no projeto da Villa Lavanda, começaria a trabalhar com finanças, migraria para a parte de organização ou daria aula de yoga.
A única certeza era que colocaríamos nosso apartamento para alugar e mudaríamos da cidade para o campo para reduzir nosso custo de vida e ganhar mais tempo com o fundo de reserva financeira que acumulamos para aguentar a transição de carreira.
A verdade é que eu não tinha a mínima ideia de onde eu queria chegar. Eu sabia de onde eu queria sair. Foram muitas mudanças: de trabalho, de rotina, de cidade, de casa, de vida. Um cenário tão novo e tão inóspito naquele momento, que o que eu precisava era encontrar onde eu estava.
Ouvi em uma live da Thais Godinho esse ideia esses dias. Ela disse algo mais ou menos assim:
“Para você saber como você vai chegar, você precisa saber onde você está, da onde vai partir.”
Onde você está?
Ao longo dos três últimos anos, desde que decidi me jogar do penhasco, entendi que ser autônomo, ou empreender, é realmente ter a capacidade de voar para onde se quer: é poder ter controle do próprio tempo, é poder seguir os próprios valores, é poder tirar férias sem ter que pedir permissão.
Se eu não sabia nem bem onde eu estava, como é que eu ia saber onde é que eu queria chegar.
No momento do diálogo da Alice com o Gato, eu imagino que ela estivesse com o mesmo sentimento. Ela não conhecia aquele mundo novo e nem estava entendendo o que estava acontecendo com ela.
(tem outro trecho muito bom do livro que é o diálogo com a Centopeia em que a pergunta é: “Quem é você?”. Vamos deixar essa para uma próxima, ou para a terapia, talvez)
Se você não sabe quem você é nesse momento depois de tantas mudanças, se você não sabe exatamente onde você está porque tantas coisas estão diferentes, como é possível saber onde você quer chegar?
A Alice só não queria ficar parada ali, ela queria caminhar para algum outro lugar.
Onde ela queria chegar?
Era impossível responder a essa pergunta porque ela não conhecia as opções.
Toda a minha vida profissional e adulta antes da minha decisão de mudar de carreira tinha sido como advogada.
É péssimo e inerente ao sistema capitalista, mas é bem difícil não se definir a partir do trabalho Você já tentou? Como você se apresenta se não começando pelo trabalho?
Oi, meu nome é Giulia. Eu amo viajar, ler e estudar, sou bem competitiva, casada com o amor da minha vida há 15 anos e tenho um cachorro muito fofo, mas que late bastante para estranhos.
Já tentei uma versão disso, e é bem estranho. A pessoa ali que não te conhece te olha com um sorrisinho esquisito. Outra tentativa foi começar pedindo para a pessoa se apresentar sem começar pela profissão. Muitas pessoas não souberam me responder.
Desvirtuei total, voltando.
Eu não sabia mais quem eu era ou onde eu estava. Ao invés de focar em entender e organizar esses pontos, que são bastante, estava focada em descobrir onde eu queria chegar. Como a Alice, eu não conhecia as possibilidades.
Eu não sabia que planejador financeiro era uma profissão e que era possível viver disso.
Descobri no caminho.
No momento em que eu estava perdida, eu só queria que alguém me ajudasse a entender o próximo passo, a abrir os caminhos. Não importava muito para onde, eu só queria recomeçar a andar.
Se é sobre a jornada e não o ponto de chegada — outro mantra que ouvimos bastante, e curiosamente contraditório com o primeiro — o que importa é como estamos caminhando.
Não significa que vamos jogar todos os planejamentos pelos ares, viver a vida loucamente e não olhar para o futuro — longe de mim, planejadora financeira e, admito, viciada em fazer planejamentos.
É mais sobre a mudança de foco do planejamento do ponto final para tudo que acontece no meio. Podemos chutar onde queremos chegar e às vezes ajuda a dar o próximo passo, mas enormes as chances de sermos surpreendidos pelas possibilidades que nem sabíamos que existiam.
Se a gente caminhar direitinho, em algum lugar legal hemos de chegar.
E é por isso que o nome da minha empresa é Caminho Financeiro.
Se estiver precisando de ajuda no seu caminho financeiro, me manda uma mensagem que marcamos uma conversa. Prometo não perguntar onde você quer chegar, mas se você tiver uma ideia, me conta.
Estou me aventurando no compartilhamento de alguns textos e pensamentos. A tentativa para esse ano é um texto a cada duas semanas. Se você chegou até aqui, fico muito muito feliz! Com tantas fontes de informação hoje em dia, conseguir atenção em um texto longo é um privilégio. Vou amar se você dividir comigo qualquer impressões que tenha tido em relação ao texto.
Com carinho,
Referência da parte que citei do Antifrágil, é um trecho bem interessante:
*TALEB, Nassim. Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos. Objetiva, 2020, página 198